por Lucas Antôny
A lenda dos irmãos Piriá, há décadas contada em tom sombrio por gerações de setelagoanos, ganha agora uma nova leitura, sensível e questionadora, através do média-metragem “Piriá é Liberdade”, dirigido por Maria Eduarda Rodrigues (Duds Tuts) e produzido por Luísa Cattabriga. O filme propõe não só uma releitura da história desses personagens controversos, mas também uma reflexão sobre o papel da memória, da oralidade e das estruturas de poder que moldam a forma como lembramos, ou esquecemos, certos capítulos da história local.
A produção é assinada pelo coletivo TRESGUARÁS, formado por Duds Tuts, Luísa Cattabriga e Arthur Quadra, e nasce do desejo de contar histórias que ecoam os territórios de origem dos próprios criadores. Com uma linguagem poética e um visual marcante, o filme mistura mistério, afeto e resistência, trazendo à tona uma lenda local que, embora popular, muitas vezes foi narrada de forma simplista ou estigmatizante.


Uma história contada por muitas bocas
A diretora Duds Tuts explica que o desejo de contar essa história surgiu do convívio direto com as muitas versões e memórias em torno dos irmãos Piriá. “O que realmente me motivou foi observar essa história sendo contada repetidamente por tantas pessoas da minha família e da cidade, gente de todos os cantos, idades e classes, sempre com alguma informação nova a acrescentar”, diz. “Essa repercussão me fez perceber que essa narrativa tinha mesmo uma grande adesão entre o público, que é também autor dessa história.”
A escolha de transformar essa lenda em cinema não foi aleatória. Para Duds, o audiovisual tem um papel central na preservação de memórias locais. “O cinema pode ser registro de uma cultura que se perpetua por gerações: uma forma de falar, de se vestir, de comer, de pensar. Essa potência é extremamente valiosa em uma cidade como Sete Lagoas, que tem muita cultura, ancestralidade e memória, mas que corre o risco de perder tudo isso diante de um crescimento econômico e tecnológico que apaga referências locais.”


Um filme feito em casa
Produzir o filme em Sete Lagoas foi uma decisão estratégica e afetiva. Mas também desafiadora. A produtora Luísa Cattabriga conta que a equipe enfrentou dificuldades técnicas e logísticas. “Tivemos que adaptar equipamentos, trazer muita coisa de Belo Horizonte e até de São Paulo. A infraestrutura para cinema no interior ainda é limitada, mas isso nos forçou a buscar soluções criativas e fortaleceu o sentimento coletivo”, afirma.

O financiamento do projeto veio por meio da Lei Paulo Gustavo 2024, através de um edital específico para médias-metragens de relevância cultural realizados fora dos grandes centros. O apoio local também foi fundamental, com parceiros como a Rádio Santana, Padaria di Brunni, Associação Mão Amiga e o Bar Matos e Matos.

Para Luísa, descentralizar a produção audiovisual é urgente. “Fazer cinema no interior é essencial para democratizar o acesso às narrativas. A gente amplia o olhar sobre o Brasil e valoriza saberes e experiências que normalmente ficam à margem. É também uma forma de mostrar que há talento e potência criativa em todo lugar.”
Pesquisa, roteiro e memória coletiva
O processo de escrita do roteiro foi, segundo Duds, uma das fases mais encantadoras. A pesquisa envolveu a leitura de jornais antigos, documentos da Polícia Militar de Minas Gerais e, principalmente, o estudo da dissertação da antropóloga Giulle Adriana Vieira da Mata, que mergulhou na história dos irmãos em sua pesquisa de pós-graduação pela UFMG. “Essa dissertação trouxe muitos relatos de moradores da cidade entrevistados sobre os Piriá. Foi uma base riquíssima.”
A diretora destaca também a escolha da rádio como elemento narrativo central. “É um dispositivo muito interessante na condução de uma narrativa oral, que passa de geração em geração. Isso nos ajudou a construir uma linguagem que honra essa forma popular de manter viva a história.”
Emoção em cena
Uma das cenas mais marcantes do filme foi, para Duds, o pacto de sangue entre os irmãos. “Foi gravada sob muita pressão de tempo. Mas quando os atores Lucas Antôny e Gustavo Teixeira voltaram de um momento de concentração com a preparadora de elenco Thaís Eduarda, chegaram carregados de emoção. Aquilo me quebrou. Fui capaz de entrar de verdade naquele mundo e me emocionar com o olhar entre os dois. Foi mágico.”


O trabalho com elenco e equipe locais também teve um peso especial. “Estar entre amigos e familiares é muito valioso. Ver pessoas que estavam em seu primeiro set de cinema se encantando com a arte foi lindo. É algo que quero viver mais vezes.”

Resgate simbólico e resistência cultural
Para Luísa, contar a história dos irmãos Piriá também é um gesto político. “É uma forma de refletir sobre como certas narrativas moldam nossa identidade. Pudemos tensionar temas como poder, verdade e justiça, que ainda ecoam hoje. É um gesto de resistência simbólica, de manter viva uma história que fala muito sobre o povo de Sete Lagoas.”

O lançamento do filme aconteceu em abril no Teatro Redenção, em Sete Lagoas, e agora passa por ajustes de finalização para ser inscrito em festivais. A equipe pretende que “Piriá é Liberdade” circule amplamente pelo país. “Queremos que ele dialogue com públicos diversos e abra caminhos para novas produções do interior”, diz Luísa.

E o público?
A expectativa da diretora é que o filme não apenas encante, mas provoque. “Quero que o público entre na diegese do filme, que se permita lembrar, refletir e continuar contando essa história. Que a antiga discussão sobre a ‘fajuta morte dos Piriá’ venha à tona de novo. Que esses personagens continuem vivos na fala da população.”
